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domingo, 16 de setembro de 2007

Uma tarde com Yoko no Dakota


Foto Corbis

Em seu apartamento do Edifício Dakota, em Nova York, entre Magrittes, uma gravura dela feita por Lennon e tumbas egípcias, Yoko Ono, 74, fala à Sérgio Dávila, enviado especial da Folha Online

Imagine que o elevador se fecha atrás de você, a porta à sua frente se abre e uma garota loira de uns 20 e poucos anos diz "seja bem-vindo", pede que você tire seus sapatos e anuncia: "Ela o receberá na "sala branca'". E que a sala branca tem esse nome porque, além de ser toda pintada de branco e ter os móveis dessa cor, no canto esquerdo de quem entra, ao lado da janela em que bate o sol da tarde, descansa um piano também branco.

E que, sobre o piano branco, há fotos de um casal com cabelos à 1969 (porque era 1969, e eles estavam se casando), dos dois com seu filho pequeno, dos pais da dupla quando jovens e deles próprios, bebês. Imagine. Você pode dizer que é o relato de um sonhador, mas aconteceu de verdade, há duas semanas, numa quinta-feira quente do verão nova-iorquino, logo após o almoço.

Yoko Ono marcou um encontro com a Folha no apartamento que dividia com John Lennon (1940-1980) e onde ela ainda mora, no sétimo andar do edifício Dakota, na esquina da rua 72 com Central Park West, em Manhattan. Ela disse que gostaria de falar de três assuntos, não necessariamente nesta ordem:

1. A obra "Imagine Peace Tower", uma torre que inaugurará em Reykjavík, na Islândia, que terá a palavra "Imagine" escrita em 24 línguas e todos os anos ficará acesa do dia 9 de outubro, aniversário do ex-beatle, até o dia 8 de dezembro, quando ele foi assassinado;

2. A retrospectiva que ela fará a partir de 10 de novembro no Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, que começou como uma mostra mas cresceu, deve incluir performances e, segundo o curador brasileiro Emilio Kalil, a obra "Yes Painting", de 1966, que levou Lennon a se interessar pela artista japonesa;

3. E o seu processo criativo.

Coleções de arte

Enquanto espera, o repórter observa as paredes da sala branca e adjacências dos dois apartamentos que tomam o andar inteiro do edifício, em que a filha do banqueiro japonês que era casado com a filha de um banqueiro japonês guarda uma das coleções privadas de arte mais valiosas e admiradas de Nova York.

Numa rápida conta, há oito Magrittes, incluindo um feito a quatro mãos que o governo francês tenta comprar de volta há anos; vários Léger, um Tamara de Lempicka gigantesco, e Yoko, John e Sean, juntos e separados, retratados por Andy Warhol, esses últimos pregados no quarto com vista para o Central Park em que ela dorme, num enorme tatame.

Na sala ao lado da branca, onde está uma estante tomada de cima a baixo por LPs antigos, é também ironicamente onde ficam pedaços de tumbas egípcias e um sarcófago. E, logo à entrada, uma gravura com o rosto da dona, cabelo ainda na fase afro da década de 70. O autor da obra é John Lennon; a tiragem, dez; aquela, a primeira das dez.

Então ela chega, silenciosa, com os pés descalços pisando o carpete creme. "Incrível, não é?", pergunta. "Eu e John adorávamos os anos 30", diz, referindo-se ao período de algumas das obras das paredes. Há outras mais no apartamento ao lado. É onde ela hospeda a filha de seu segundo casamento (John foi o terceiro), Kyoko Chan Cox, e seus netos.

Cozinha-escritório

"Vamos conversar na cozinha?" É lá, no final do corredor, que ela "despacha", decide suas exposições, fecha negócios e faz projetos. A "cozinha", do tamanho de um estúdio nova-iorquino de bom porte, conta com um ambiente equipado com um home-theater e dois fogões industriais, além de servir de lar a um cozinheiro marroquino que fica à disposição do apetite de Yoko e visitas.

Com 1,63m, toda de branco, com uma camisa transparente que mostra o corpete preto com um decote ousado, magra, cabelo mais preto do que branco e mantido curto, não aparenta nem faz questão de aparentar os 74 anos. Senta na cabeceira da mesa de oito lugares e fala olhando por cima dos óculos de vidros violeta que se tornaram uma de suas marcas.

Por trás dela, na soleira da janela que dá para a mesma entrada onde seu marido foi assassinado com quatro tiros 27 anos atrás, há uma melancia fechada e apetrechos para um almoço rápido japonês. A funcionária loira, uma da entourage de dez que trabalham para ela, oferece algo de beber.

Águas são servidas. Chegam em copos com motivos de dois filmes: "Help!" (de 1965) para o repórter, "A Hard Day's Night" (de 1964) para a mulher que um dia chegou a ser apelidada de "Madame Mao do rock" e acusada de acabar com a banda mais popular do planeta. Serão a única referência aos Beatles à vista em todo o apartamento durante o encontro.

Então, começa a conversa:

Folha - O que é uma exatamente uma "torre de paz"?

Yoko Ono - Bem, é o oposto de torre de guerra! (risos). Na verdade, não me oponho a nada. Só sou ligada à paz em geral e à paz mundial. Podemos fazer do mundo um lugar pacífico, e conseguiremos, se todos tentarmos. Vai acontecer, porque há muitas pessoas pensando nisso e querendo isso. Por outro lado, nós também podemos explodir o planeta, mas não acho que seja algo que alguém realmente queira. A não ser os malucos.

Folha - Você é conhecida por fazer uma arte provocativa. Que reação espera das pessoas quando está criando?

Yoko - Não tento provocar nada. Tento ser eu mesma. Sou sempre eu mesma. E, apenas por ser quem eu sou, parece que é criado um incrível, não sei, um tipo de cisma... Não, não quero dizer cisma. Parece que é criado um tipo de agitação. Porque sou uma mulher, porque sou asiática e porque sou uma artista. Três coisas ainda consideradas não apropriadas por algumas pessoas.

Folha - Você pensa nessa reação ao criar?

Yoko - Não, estou apenas sendo eu mesma. Por exemplo, fiz uma exposição na Bienal de Liverpool, "My Mummie is Beautiful" ("minha mãe é linda", de 2004, em que mostrava fotos de genitais e seios de mulheres). Era uma oferta maravilhosa, eu a via como minha carta de amor a Liverpool. E (irônica), ó, que surpresa, muita gente não gostou! Mas algumas pessoas gostaram. Logo, não se pode agradar a todos... Isso ainda me surpreende. Provavelmente a sensação seria melhor se todos gostassem. Mas não gostaram, e isso é um fato.

Folha - Já que estamos no assunto, você realmente comeu um corgi (cachorro da raça dos da rainha da Inglaterra), em Londres, em maio último, como forma de protesto contra o tratamento que o marido dela dá às raposas nas caçadas?

Yoko - Não vou negar que há quem coma cachorro. Em certos países asiáticos, é uma coisa normal. Mas não era uma tradição no meu país e eu nunca tive essa experiência. As pessoas que disseram isso estavam tentando usar meu nome para ter mais publicidade. Desejo boa sorte a eles. Mas eu nunca comi aquele cachorro. Por sorte, naquele dia eu estava em Moscou, não em Londres.

Folha - Você comeria o Barney, o cachorro de George W. Bush?

Yoko - (Risos) Deixe que ele mesmo faça isso, não eu.

Folha - John Lennon disse que você é a artista desconhecida mais famosa do mundo, pois todo o mundo sabe seu nome, mas ninguém sabe o que você faz. Isso ainda vale?

Yoko - Sim, ainda vale, de um jeito muito estranho. De certa maneira, naquela época era uma autoproteção eu não ser tão visível. Afinal, eu estava ao lado de John. E muitas pessoas diziam: "Como ela ousa ficar ao lado dele!" Tudo o que eu fazia era considerado controverso. Mas não deveria ser. O que eu quero dizer é: vai chegar o dia em que será normal ser uma asiática, uma mulher e uma artista ao mesmo tempo e ainda assim estar com seu marido, ao lado de um cara também artista.

Folha - Você acha mesmo que sofre preconceito por ser mulher e asiática?

Yoko - Sim, ainda vivemos nesse tempo. Mas, agora, eles pensam que é politicamente incorreto ter essas emoções (Risos). Então, eles as engolem. Mas ainda as têm! O fato de que todos nós fizemos algo ajudou, é claro, especialmente para as mulheres. Muitas vêm a mim e dizem "obrigado por ter feito algo para as mulheres", o que é verdade, no sentido de que, antes de nós apoiarmos o feminismo, a posição das mulheres era muito pior do que hoje.

Folha - Não a desanima o fato de ainda ser atual o anúncio "War is Over (if you want it)" (a guerra acabou - se você quiser), que você e John fizeram para a Guerra do Vietnã mas que você republicou por conta da Guerra do Iraque?

Yoko - É mesmo, não foi o máximo republicar o anúncio?

Folha - Nesse sentido, os anos com John ainda a inspiram?

Yoko - Não se pode dizer necessariamente que ele seja minha inspiração. Isso porque, se eu fosse um cara, um artista homem, e dissesse "minha mulher é minha inspiração", todos diriam, "Ah, o.k." Mas, se uma mulher diz "meu marido é minha inspiração", tem uma conotação diferente. Eu não estou negando o fato de que ele estava por aqui enquanto eu criava, mas nós inspirávamos um ao outro. E agora... O que me inspira são as coisas que nós fizemos juntos e também as coisas que eu fiz antes, sozinha, antes de conhecê-lo. Tudo o que eu fiz em 74 anos, na verdade.

Folha - Você pensa em gravar de novo?

Yoko - Estava pensando de manhã, talvez seja a hora de eu fazer algo, mas estou tão ocupada, que não terei tempo de fazer mais nada. (Divaga) Ontem eu pensei, "por que as pessoas estão sempre xingando as outras e o que é ruim sobre xingar os outros?" Porque eu li em um livro que as pessoas rezam por coisas boas, mas talvez 10% das pessoas do mundo estejam rezando para que as pessoas morram ou coisas más. Então, pensei: por que eles fazem isso? E por que é ruim fazer isso? Eu digo porque é ruim: você não pode sobreviver sozinho. É muito melhor usar sua energia para viver, sobreviver, que para prejudicar os outros. Não só com palavras ruins ou pensamentos ruins, mas com ações más. Eu não tenho. Bom, às vezes eu digo: "Ah, ele é tão burro". Depois eu digo: "Ah, me desculpe". Eu não tenho tempo para xingar as pessoas! (Risos) Eu digo de vez em quando "shit" (merda), mas não sempre, porque não tenho tempo para isso.

Folha - Você tem tempo para o quê?

Yoko - Desejar coisas boas, o bem do mundo e meu também. Se você tiver três ações boas por dia já é o bastante. Três vezes por dia por dois meses, e você verá como sua vida inteira será diferente. É verdade. Mas eu não fico fazendo as contas...

Folha - É verdade que Sean vai com você ao Brasil?

Yoko - Não creio, não sei a agenda dele. Nesse momento estamos tendo vidas muito independentes. Ele tem muitas coisas para fazer, não quero incomodá-lo.

Folha - John e você o influenciaram como artista?

Yoko - Não sei, acho que não. Ele tem seu próprio talento e toma suas próprias decisões artísticas, e eu respeito isso. Espero que ele não sinta algo como "meu pai, minha mãe eram tão grandes, então eu sou apenas produto da influenciado deles". É bom que ele tenha suas próprias coisas.

Folha - Vocês tomavam cuidado como pais para que ele não sentisse o peso de ser filho de quem era, quando pequeno?

Yoko - Sim, bastante. John e eu nunca falamos com ele sobre nosso trabalho. Sean ouviu de alguém que seu pai tinha sido um Beatle. Então ele correu nessa mesma cozinha, o pai dele estava sentando aqui nessa cadeira, e ele perguntou: "Papai, papai, você é um beatle?" E John disse (ela tenta imitar a voz dele): "Ah, talvez eu tenha sido, não sei..." (Risos)

Folha - E o inverso, também acontece? Ele não lhe mostra o que está criando?

Yoko - É verdade, ele não me deixa saber o que está fazendo antes de estar pronto. Desde pequeno é assim. Mas veja que curioso: eu percebi que desde pequeno ele conhece todas as músicas dos Beatles, todas as músicas de John Lennon, todas as músicas de Yoko Ono. Porque ele é um músico, então não é só conhecer as músicas, mas cada batida, cada harmonia. Não sei como ele descobriu isso sozinho.

Folha - O que você ouve?

Yoko - Basicamente, a música que está em minha cabeça.

Folha - Há sempre uma, como um mantra?

Yoko - (Risos) Não necessariamente, às vezes é uma música nova. Você pode chamar de mantra, mas há sempre uma melodia, não melodia, um ritmo, que está sempre em minha cabeça.

Folha - Algo brasileiro?

Yoko - Não. Mas sei que serei bastante exposta a música brasileira quando for a São Paulo. Eu nunca estive em São Paulo. Eu fui para o Rio e depois a Brasília. As pessoas me diziam, "não vá a Brasília, é entediante". Não achei, de maneira nenhuma. Adorei a arquitetura e tudo aquilo, achei maravilhoso e grandioso. É uma cidade com classe.

Folha - Você sabia que o arquiteto de Brasília faz 100 anos em 2007?

Yoko- É mesmo? Incrível. Adoraria chegar a essa idade criando. Eu espero que chegue. Porque tem tanta coisa que eu ainda quero fazer. E eu pretendo me divertir fazendo.

Folha - Você já pensou em deixar esse apartamento?

Yoko - O que eu faço agora funciona mais num lugar em que eu me sinto mais à vontade. E o lugar em que me sinto mais à vontade é nesse apartamento. É muito precioso para mim, pois é o último lugar em que eu e John construímos um lar. E Sean nasceu enquanto nós estávamos aqui. Para ele, esse é o único lar que ele tem referência dos pais juntos vivos. Assim, gosto de mantê-lo como está e também acho que é uma bênção que eu o tenha.

Folha - Qual o seu processo de criação, afinal?

Yoko - Não sei. Às vezes me inspiro no meio da noite, ou durante a noite, ou de manhã. Eu não sei realmente o que me inspira, mas eu acho que a inspiração é muito importante. E, quando eu estou inspirada, eu realmente preciso fazer algo. Eu pego um pedaço de papel e escrevo.

Folha - Sua música é considerada por alguns críticos como precursora do punk rock e do new wave. Você concorda?

Yoko - Concordo totalmente. Eu não sou tão interessada em história da música. Deixo isso para os críticos. Só quero criar o que recebo, minha inspiração, e eu quero expressá-la. Não me pergunte onde eu me encaixo musicalmente na história. Acho que muitas coisas aconteceram a partir do que eu fiz, é claro, mas e daí? Aconteceriam de qualquer maneira. Acho que é interessante continuar fazendo o que eu quero fazer.

Folha - Você é religiosa?

Yoko - Não sigo nenhuma demoniação. Eu acho realmente que todos nós temos Deus em nós e que todos deveríamos libertar isso, para que pudéssemos criar o mundo que nós queremos. E podemos fazer isso.

Folha - O que as pessoas podem esperar de sua retrospectiva no Brasil?

Yoko - Os brasileiros podem esperar alguém que está muito animada em ir até lá, especialmente São Paulo. E podem esperar amor.

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