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quarta-feira, 15 de agosto de 2007

O homem que fazia perguntas difíceis


'Persona' e 'Cenas de um casamento', dois clássicos de Ingmar Bergman

Woody Allen, no New York Times (tradução do RA)

Recebi a notícia da morte de Bergman em Oviedo, uma pequena e adorável cidade no norte da Espanha onde estou rodando um filme. Uma mensagem telefônica de um amigo mútuo foi retransmitida no set. Bergman me disse uma vez que ele não queria morrer num dia ensolarado, e como eu não estava lá, só posso esperar que ele tenha tenha tido o tempo nublado que todos os diretores merecem.

Eu já disse isso antes às pessoas que têm uma visão romântica do artista e consideram a criação um ato sagrado: no final, sua arte não salva você. Não importa o quão sublime é o seu trabalho (e Bergman nos deu um vasto cardápio cinematográfico de obras-primas), ele não o protege da temida batida na porta que interrompeu o cavaleiro e seus amigos no final de "O sétimo selo". E assim, num dia de verão do mês de julho, Bergman, o grande poeta da mortalidade, não pôde adiar seu inevitável xeque-mate, e o melhor cineasta de toda a minha vida se foi.

Eu tenho feito piadas sobre a arte ser o catolicismo do intelectual, que é a fé na existência de uma outra vida. Para mim, melhor do que viver nos corações e mentes do público é viver em seu próprio apartamento. E, certamente, os filmes de Bergman viverão e serão vistos nos museus, na TV e vendidos em DVDs, mas, para quem o conheceu, isso é uma pobre compensação. Estou certo de que ele ficaria muito mais feliz se pudesse trocar cada um de seus filmes por um ano a mais de vida. Isso daria a ele, por baixo, mais 60 aniversários para continuar fazendo filmes, uma respeitável marca criativa. E na minha mente não há dúvida de que ele usaria esse tempo extra fazendo a coisa que mais gostou de fazer, acima de todas as outras: rodar filmes.

Bergman amava o processo. Ele pouco se importava com a repercussão de seus filmes. Ficava satisfeito quando eles eram apreciados, mas, como me disse certa vez, "se eles não gostam de um filme meu, isso me chateia... por 30 segundos." Ele não estava interessado nos resultados da caixa do escritório, ainda que produtores e distribuidores o considerassem sempre um nome para abrir o fim de semana nas salas de cinema, o que entrava por um ouvido e saía pelo outro. Ele dizia, "lá pela metade da semana, o prognóstico mais otimista deles acaba reduzido a nada." Ele gostava da aclamação dos críticos, mas nem por um segundo precisava disso, e mesmo querendo que o público gostasse do seu trabalho, não costumava presenteá-lo com filmes fáceis.

No entanto, aqueles que decifram seus filmes têm o esforço recompensado. Por exemplo, quando você entende que as duas mulheres de "O silêncio" representam, na verdade, dois aspectos antagônicos de uma mesma mulher, o filme, antes enigmático, se torna claro como por encanto. Ou se você está em dia com a filosofia dinamarquesa antes de assistir "O sétimo selo" ou "O mágico", isso certamente vai lhe ajudar, mas eram tão incríveis os dotes de contador de histórias de Bergman que ele podia manter uma platéia hipnotizada mesmo com um material difícil. Eu já ouvi pessoas saindo do cinema depois de certos filmes dele dizendo: "eu não entendi exatamente o que eu vi, mas cada cena do filme me deixava mais preso à poltrona."

Fiel ao teatro, Bergman era um grande diretor de palco, mas seu trabalho no cinema não tinha apenas influências teatrais: as influências também vinham da pintura, da música, da literatura e da filosofia. Seu trabalho investigava as mais profundas questões da humanidade e, muitas, vezes, traduzia no celulóide esses misteriosos poemas. Mortalidade, amor, arte, o silêncio de Deus, a dificuldade dos relacionamentos humanos, a agonia das dúvidas religiosas, casamentos fracassados, a inabilidade das pessoas se comunicarem umas com as outras.

E, no entanto, o homem em si era caloroso, agradável, brincalhão, inseguro sobre os seus imensos dons, amado pelas mulheres. Encontrá-lo não era, repentinamente, entrar no templo criativo de um formidável, intimidador, sombrio e reflexivo gênio que entonava, com sotaque sueco, complexas revelações sobre a apavorante fé humana em um universo sombrio. Era mais desse jeito: "Woody, eu tenho esse sonho bobo em que chego no set para fazer um filme e não sei onde colocar a câmera; o negócio é, eu sei que sou muito bom nisso e tenho feito isso durante anos. Você já teve esses sonhos tensos?" Ou então: "você acha que poderia ser interessante um filme onde a câmera nunca se movesse e os atores apenas entrassem e saissem de cena? Será que as pessoas iriam rir de mim?"

O que alguém fala para um gênio no telefone? Eu não acho que seria uma boa idéia, mas nas suas mãos poderia se transformar em algo especial. Além do mais, o vocabulário que ele inventou para investigar as profundezas psicológicas dos atores pode também parecer absurdo para quem aprende a filmar de uma maneira ortodoxa. Na escola de cinema (eu fui expulso da Universidade de Nova York quando me especializava em cinema nos anos 1950) a ênfase é sempre no movimento. Essas são imagens em movimento, diziam aos estudantes, e a câmera deve se mover. E os professores estavam certos. Mas Bergman colocava a câmera no rosto da Liv Ullmann ou da Bibi Anderson e a deixava lá imóvel e o tempo passava, passava, e uma estranha e maravilhosa coisa, única em seu brilho, acontecia. Éramos sugados pelo personagem e, ao invés de ficarmos entediados, aquilo nos emocionava.

Bergman, por todos as suas idiossincrasias e obsessões filosóficas e religiosas, era um fiandeiro de histórias que não conseguia se entreter mesmo quando toda a sua mente estava dramatizando as idéias de Nietzsche ou Kierkegaard. Eu costumava ter longas conversas com ele. E sua voz vinha da ilha onde ele morava. Eu nunca aceitei seus convites para visitá-lo porque a viagem aérea me assustava, e eu não me meteria a voar num pequeno avião até um ponto próximo da Rússia para o que eu imaginava ser um almoço de iogurte. Nós sempre discutíamos filmes e, claro, eu sempre o deixava falar a maior parte do tempo, pois me sentia privilegiado por ouvir suas idéias e pensamentos. Ele projetava filmes para si mesmo todos os dias e nunca se cansava de vê-los. De todos os tipos, mudos e falados. Para dormir, ele assistia algum tipo de filme que não o fizesse pensar e diminuísse a sua ansiedade, às vezes, um do James Bond.

Como todos os grandes estilistas do cinema, Fellini, Antonioni e Buñuel, por exemplo, Bergman tinha os seus críticos. Mas, descontados ocasionais lapsos, todos esses artistas marcaram profundamente milhões de pessoas em todo o mundo. No entanto, aqueles que mais conhecem cinema, os que fazem filmes - diretores, escritores, atores, fotógrafos, editores -, talvez venerem, no mais alto grau, o trabalho de Bergman.

Porque eu sempre o elogiei entusiasticamente durante todos esses anos, quando Bergman morreu, muitos jornais e revistas me ligaram pedindo comentários ou entrevistas. Como se eu tivesse algo de real valor para adicionar à triste notícia, além de, mais uma vez, exaltar a sua grandeza. E perguntaram: como ele havia me influenciado? Ele não me influenciou, respondi, ele era um gênio e eu não sou um gênio e genialidade não pode ser aprendida nem sua mágica transferida a outra pessoa.

Quando Bergman apareceu nas salas de arte de Nova York como um grande cineasta, eu era um jovem escritor de comédias e me apresentava em clubes noturnos. Pode o trabalho de alguém ser influenciado por Groucho Marx e Ingmar Bergman? Mas eu absorví uma coisa dele, uma coisa que não depende de genialidade ou mesmo de talento mas de algo que pode ser aprendido e desenvolvido. Estou falando sobre o que é muito freqüentemente chamado de trabalho ético, mas que é, na verdade, pura disciplina.

Eu aprendi, pelo seu exemplo, a tentar fazer o melhor trabalho de que sou capaz em determinado momento, nunca sucumbir ao tolo mundo de sucessos e fracassos ou representar ostensivamente o papel de diretor, mas simplesmente terminar um filme e começar outro. Bergman fez em torno de 60 filmes ao longo de sua vida, eu fiz 38. Se não posso atingir sua qualidade, talvez eu possa, pelo menos, me aproximar da sua quantidade.

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