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domingo, 19 de março de 2006

'Me considero de esquerda'

Trechos da entrevista do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso à revista Veja:

As alianças que fiz na Presidência da República estiveram sempre baseadas numa ética de convicções. No livro (A Arte da Política - A História Que Vivi -, a ser lançado em 15 dias), eu insisto na necessidade de o governante tê-la, porque é importante contar com um programa, com objetivos. É isso que permite, no fim do governo, fazer um balanço para verificar se as pessoas caminharam no rumo que você desejava ou não.

A visão estatista ainda existe em todos os partidos, inclusive no meu. Como a média brasileira é essa, quem tem uma proposição avançada paga sempre um preço pelo pioneirismo. Veja o meu caso, por exemplo: fui acusado de traição à pátria e tal, até que as pessoas progressivamente, mesmo sem reconhecer, mesmo sem beijar a cruz, foram passando para o meu lado. Acho extraordinário ouvir o Lula hoje em dia. Chego até a pensar: "Mas esse é o Lula ou sou eu?"

Embora às vezes o chamem de populista, não acho que o Lula seja um populista no sentido clássico. Ele usa da emoção para atingir seus objetivos, mas sua ação de Estado não é irracional. Por que é assim? Porque não tem mais jeito de ser totalmente irracional no Brasil. As estruturas existentes de interesses e valores, reitero, já são suficientemente poderosas para impedir que isso ocorra.

O capitalismo tem um problema que me irrita: a desigualdade. É da sua essência. No Brasil, vive-se pedindo que haja um rápido crescimento econômico acompanhado de maior igualdade. Ora, quando um país cresce depressa, aumenta a desigualdade, não a igualdade. O país tem de acumular riqueza primeiro. Isso é da natureza do capitalismo. No socialismo também é assim. Só que, nesse sistema, existe a suposição teórica de que não há apropriação privada da produção.

Me considero de esquerda. Mas da esquerda democrática, à la Bobbio - Norberto Bobbio (1909-2004), filósofo e cientista político italiano. Sou de esquerda quanto à defesa de valores como a justiça social e a igualdade.

No Brasil, mais do que conservadorismo, temos uma mentalidade atrasada. O pensamento conservador filia-se a uma tradição ocidental que estabelece como pilar da ordem a família, a propriedade, os costumes. O nosso conservadorismo não é nada disso. Tem a ver com clientelismo, patrimonialismo, uso indevido dos recursos do Estado. Ele não é composto de um ideário, e sim de aproveitadores. Por que a "direita", no Brasil, apóia todos os governos, não importa qual. Na história recente, ela apoiou os militares, apoiou o Sarney, apoiou o Collor, apoiou a mim, apóia o Lula. Porque seus integrantes não são de direita. Essa gente toda só quer estar perto do Estado, tirar vantagens dele.

O PT, na sua origem, era composto basicamente de três setores: o ideológico, o eclesial e o sindical. Quem ganhou foi o setor sindical, é ele que está no governo. Trata-se de um fenômeno mais "americano" do que europeu. O pessoal na Europa fala do PT como se ele fosse um partido moldado na esquerda européia tradicional. No início até dava essa impressão, mas a verdade é que não tem nada a ver. Eles nem falam mais em classe trabalhadora. A liderança do PT é de classe média, de gente que ascendeu socialmente, via sindicalismo, e se comporta hoje quase como se vivesse o "american dream" – algo como "eu cheguei lá, consegui deixar minha classe de origem para trás".

Alguns setores do PT ainda se pensam revolucionários e o PSDB nunca se pensou como tal. Essa auto-representação é um problema para o PT, porque impediu que ele tivesse uma prática política conseqüente. No governo, fiz alianças porque tinha propostas para o país. O PT chegou ao governo sem nenhuma. Teve de tecer alianças sem programa – e, quando você tem de fazê-las dessa forma, acaba sendo engolido por elas. É patético ver o Lula correndo atrás do PMDB. Quais são as propostas que estão por trás disso? Não há.

Acho que ninguém precisa ter universidade no currículo para ser presidente. Afinal de contas, há muita gente com grau superior que não sabe nada. Mas acho importante que o político tenha aprendido algo. Ele tem de ler, tem de ter curiosidade intelectual. Porque, senão, você fica sem bases mais sólidas para discernir. O presidente Lula tem muita sorte. Não passou por nenhuma crise econômica com efeitos globais como as que tive de enfrentar. Não foi provado. Fica mais fácil, assim, comportar-se apenas como um relações-públicas do próprio governo.

Pessoalmente, tenho uma relação fácil com o Lula. Mas esse negócio dele viver dizendo que fez mais do que eu... Qualquer hora ele vai comemorar o fato de que, quando deixar o governo, haverá mais brasileiros vivos do que no fim do meu último mandato.

O investimento público caiu drasticamente neste governo e as reformas foram paralisadas. A reforma da Previdência, por exemplo: no início, houve uma euforia, porque nós votamos a favor daquilo que, no meu governo, eles votavam contra. Não foram feitas, no entanto, as leis complementares que permitiriam a sua implantação. Com isso, teremos neste ano um déficit na Previdência de 50 bilhões de reais – um buraco que certamente causará um problema fiscal mais adiante.

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